No dia 30 de janeiro de 1979, Donny
Hathaway era encontrado morto na calçada em frente ao Essex House Hotel, em
Nova York. A partir daquele instante, uma série de especulações sobre o trágico
episódio ganhava corpo. Mero acidente ou ato premeditado? O jovem músico havia caído
ou se atirado da janela do edifício? Todos os indícios guiavam a investigação
policial à hipótese de suicídio. Aos 34 anos e ainda sob o impacto do sucesso,
sua prematura morte chocou a comunidade negra e a todo o mercado fonográfico,
que, naqueles anos, celebrava a efervescência da soul music a bordo de
fenômenos vocais como Marvin Gaye e Stevie Wonder. Da noite para o dia, familiares,
amigos e fãs questionavam-se sobre os motivos que o teriam levado a tal ato e
estado de desespero. O quão atormentado seria o cantor e autor de melodias tão
tristes e profundas, como outras tão eufóricas e dançantes?
Resposta alguma servia para preencher a lacuna de informações que o
ostracismo de seus últimos anos de vida havia instaurado. Apenas os mais
próximos ventilavam alguma noção sobre os embates psíquicos que haviam
fragilizado sua saúde mental. Mais do que um dos maiores cantores da história
da música popular moderna, embalado pelo peso de um grave sísmico e a leveza de
agudos altivos e firmes, Hathaway era compositor, arranjador e produtor
musical. E é pela qualidade de seus múltiplos dotes que, 40 anos depois da sua
morte e três décadas após o lançamento do seminal Everything is
everything (1970), sua contribuição à música pop dos anos 60 e 70 até
os dias de hoje é exaltada.
“Todos que o escutavam concordavam que Donny era um grande cantor. A
Atlantic Records, Curtis Mayfield, King Curtis... Todos entenderam que se
tratava de um gênio”, diz o arranjador e amigo Harold Wheeler, em depoimento ao
primeiro documentário dedicado à conturbada vida e obra do cantor, Donny
Hathaway – Unsung, produzido este ano pela TV One.
Em sua breve e intensa carreira
(1970-1979), Hathaway emprestou sofisticação harmônica à simplicidade do
r&b. Seu legado extravasa o punhado de hits em paradas de sucesso e o
balizamento favorável da crítica para os três álbuns solo que compõem sua trajetória.
Filha mais velha do músico, a cantora Lalah Hathaway encontra dificuldades em
mensurar o legado das contribuições musicais de seu pai. E ainda mais para
avaliar a influência que a sua música ainda causa nos jovens artistas que o
citam como influência – Amy Winehouse, Alicia Keys, Raul Midon, Justin
Timberlake, rappers como Common, Nas e muitos outros.
– É impossível avaliar a sua
importância e influência no trabalho desses artistas. Acho que o maior legado é
o sentido espiritual que ele representou – acredita Lalah. – Quando ouvimos
suas canções podemos sentir o que se passava com ele em cada um de seus
trabalhos. As pessoas não se cansam de dizer que a voz do meu pai faz chorar,
mesmo nas canções mais alegres. Tanto a sua alegria como a sua dor brilham da
mesma forma, sempre por uma essência verdadeira.
Em 1945, a Segunda Guerra Mundial
havia chegado ao fim, os soldados americanos retornavam para casa e Donny
Hathaway nascia em Chicago. Filho de um ex-militar, foi criado em St. Louis,
por sua mãe. Lá, desde pequeno acompanhava as apresentações de sua avó, uma
respeitada cantora gospel. Prodígio, aos 4 anos já estampava sua figura
rechonchuda em cartazes. Aos poucos, suas habilidades como instrumentista e
cantor saltaram aos olhos dos colegas de escola, e lhe renderam uma bolsa na
prestigiada Howard University, que abrigava afro-descendentes sem restrição,
numa época de grande segregação racial. O reconhecimento dos colegas lhe
emprestava confiança para deixar de lado a timidez. E inclusive para render-se
ao primeiro amor, a vocalista Eulaulah Hathaway. Era meados dos anos 60, a cena
musical e noturna de Washington tronava-se elétrica e faminta por jovens
talentos – e Hatahaway aproveitava as oportunidades.
Pouco tempo depois, em 1967, ganhava sua primeira filha, Lalah. A
responsabilidade batia à porta. E um novo emprego surge como um presente de
outra lenda da música black, Curtis Mayfield. Pelo selo de Mayfield, gravou
alguns singles e discos, antes de retornar a Chicago para compor e produzir
artistas como The Staple Singers, entre outros nomes contratados por gravadoras
lendárias, como Chess e Stax Records. A consistência das ideias, a fluidez das
composições e a criatividade dos arranjos tecidos em estúdio chamaram a atenção
de Roberta Flack, que debutava com duas canções de Hathaway no repertório. Após
prensar o single The ghetto, com o Rick Power Trio, sua
musicalidade fisgou medalhões do mercado. Entre ele, King Curtis, que o pôs em
contato com o diretor artístico e executivo da Atlantic Records, Jerry Wexler
(1917-2008).
“Curtis jogou na minha mesa uma fita
desse cantor... Fiquei impressionado com o que ouvi. Àquela época costumava
dizer que tínhamos dois gênios, Aretha Franklin e Ray Charles. Mas quando Donny
surgiu e assinamos contrato fiz questão de anunciar a todos que tínhamos
encontrado o nosso grande gênio”, disse Wexler à época.
Sob o guarda-chuva da Atlantic, artistas de peso receberam guarida.
Wexler fora o responsável por descobrir e fechar acordos milionários com Ray
Charles, Aretha Franklin, Led Zeppelin, Wilson Pickett, Dusty Springfield,
entre outros. Em 1969, era chegada a hora de Hathaway, que fez as malas e foi a
Nova York gravar seu debute. Escreveu arranjos e compôs todas as faixas de Everything
is everything.
“Donny tinha um dom fora do normal.
Era perfeccionista e sabia muito bem o que queria. Tudo estava escrito na
pauta. Lembro de uma sessão em que ele passou horas repetindo a mesma parte até
que soasse da forma como imaginava”, conta Wexler.
Após a boa receptividade do disco e a gravação do hit The
Christmas, Hathaway terminou o segundo álbum, auto-intitulado Donny
Hathaway. Capitaneado pelo antológico single A song for you e
pela bela faixa de abertura, Givin up, o trabalho foi elogiado pela
crítica.
– Giving up é uma das maiores canções já feitas –
elogia, em entrevista ao Jornal do Brasil, a jovem e talentosa cantora inglesa
Joss Stone. – Donny tem controle total sobre todas as etapas do processo. Não
há espaço para acidentes, erros… Ele é brilhante e me faz sentir bem demais
sempre que ouço suas músicas.
Em 1972, após o nascimento de sua segunda filha, Kenya, Donny uniu
forças com Roberta Flack para um álbum recheado de clássicos, interpretados em
duetos. O trabalho bateu o terceiro lugar nas paradas e o single Where's
the love recebeu uma indicação ao Grammy. Inúmeras propostas e
convites para produção de discos e encomendas de canções não paravam de chegar.
E o mercado cinematográfico não ficou para trás. Com supervisão de Quincy
Jones, foi escalado para compor a trilha para o longa Come back,
Charleston blue(1972). “Eu era o supervisor geral do filme e os estúdios
pediram que eu gravasse com o melhor compositor que eu conhecia. O mais
incrível de eles era ele”, disse Quincy Jones.
Na mesma progressão em que florescia
o sucesso, era aplacado por um comportamento irascível, que estranhava até aos
amigos mais próximos. Em casa, sintonizava a TV em canais que não transmitiam
programa algum. No estúdio, explosões de irritabilidade eram constantes.
Enquanto empresários e produtores diziam que tudo estava sob controle, era
claro que algo a mais precisava ser feito. “Procurei ajuda médica para saber se
realmente havia algo de errado”, revela sua ex-mulher no documentário.
O diagnóstico era claro: paranoia esquizofrênica. Hathaway acreditava
que a sua filha Lalah podia enxergar o que se passava dentro dele. Mania de
perseguição, crises de ansiedade e de pânico eram mantidas sob controle à base
de pesados medicamentos. Aos poucos, sentia-se melhor e deixava o tratamento de
lado. A doença permanecia como uma sombra. Em 1973, o lançamento de sua obra
derradeira, Extension of a man, não obteve o sucesso alcançado
anteriormente. Conforme os sintomas pioravam, ficava mais difícil de ignorar o
que acontecia com ele. “Fui visitá-lo no hospital e percebi mudanças repentinas
de humor”, afirma o compositor Glen Watts.
De 1974 a 1978, Donny desapareceu da
mídia. Perdeu contatos no mercado e rompeu o relacionamento com Eulaulah. Suas
pequenas filhas deixaram de ter contato com o pai. E até hoje Lalah lembra-se
pouco dos momentos em que estiveram juntos.
– Não lembro direito de como era o
meu pai. Tinha apenas seis ou sete anos à época – diz ela.
Em 1978, a febre disco tomava conta das pistas e das rádios. Muitos de
seus contemporâneos, entre eles Stevie Wonder e Marvin Gaye, adequavam-se à
nova sonoridade, enquanto Hathaway esforçava-se para transpor cinco anos de
sofrimento psíquico e obscuridade. Voltou a trabalhar com Roberta Flack, e com
ela ganhou força a bordo do hit The closer I get to you. Iniciaram
as gravações de um segundo trabalho em dupla. Seus vocais continuavam sólidos,
mas seu estado físico e mental eram visivelmente frágeis. Enquanto punha voz
numa das faixas, desesperou-se. Saiu correndo do estúdio e foi encontrado
chorando no corredor. Dizia estar sendo perseguido e ameaçado de morte. “Os
homens brancos querem me matar. Colocaram meu cérebro numa máquina e agora
estão roubando minha música e o meu som”, dizia. Na manhã seguinte ao surto,
aos 34 anos, sua vida ganhava o ponto final.
FONTE: JB
Excelente esse cara era um mestre voz lindíssima e musica maravilhosas melodias sensíveis e muita expressão!!!
ResponderExcluirDonny Hathaway até hoje é uma figura emblemática do soul e do R&B. Suas composições, arranjos e vocais inesquecíveis. Sua interpretação para Givin'Up é obra prima!
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