Pesquisa
conclui que o aumento expressivo da palavra ‘depressão’ na mídia brasileira foi
acompanhado por uma ruptura de seu sentido na década de 1990.
“Não
há um dia em que a palavra ‘depressão’ deixe de ser veiculada por um meio de
comunicação brasileiro”, garante Ericson Saint Clair. Parece exagero, mas o
trabalho do comunicólogo comprovou a inquietação que o motivou: “todos os dias
há jornalistas que insinuam que seus leitores podem estar deprimidos.”
Mais do que inquietação, uma antipatia à
superexposição do tema na mídia e sobretudo ao viés cientificista e prescritivo
que a acompanhava levou o pesquisador à seguinte questão: “como a depressão
tornou-se objeto de atenção midiática?”, a qual buscou responder em seu
doutorado na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Com base na análise de uma amostra expressiva
da imprensa brasileira, Saint Clair não só observou nesse meio um vertiginoso
aumento das referências à depressão nas últimas décadas, como também uma
ruptura radical de sentido que a palavra sofreu nos anos 1990.
De um mal coletivo, reflexo das agruras
sociais, políticas e econômicas do Brasil, especialmente durante a ditadura
militar, a depressão passaria a ser compreendida a partir desse período como um
mal privado, explicado objetivamente pela ciência e afastada do contexto
sociocultural do país.
O comunicólogo atribui essa cisão a uma série
de fatores, entre eles o desenvolvimento de novas formas de diagnóstico e
tratamento da depressão e a significativa relevância conquistada pelo tema da
saúde, tida, especialmente a partir da década de 1990, como uma
responsabilidade individual.
“A mídia passa
a adotar um tom claramente
pedagógico, encorajando seus leitores
à modificação
de seus comportamentos diante
das ‘verdades descobertas’ pela ciência”
Saint Clair observou ainda que, com o novo
sentido midiático da depressão, veio uma reconfiguração da função social que os
meios de comunicação reivindicam para si em relação ao problema.
Enquanto nos anos 1970 e 1980 a
cobertura sobre depressão era uma maneira de denunciar as formas de dominação
política e econômica do governo, a partir de 1990 ela assumiria a tarefa de
fornecer informações científicas sobre o tema e promover mudanças de
comportamento. “A mídia passa a adotar um tom claramente pedagógico, encorajando
seus leitores à modificação de seus comportamentos diante das ‘verdades
descobertas’ pela ciência”, analisa o pesquisador.
Depressão na imprensa
Para analisar a trajetória da depressão na
imprensa brasileira, Ericson Saint Clair acompanhou quatro décadas (1970-2010)
de textos do jornal Folha de São Paulo e da revista Veja em que a palavra ‘depressão’ com
sentido psíquico (médico ou não) foi mencionada,
independentemente das editorias em que se deram essas menções.
“São dois veículos que geram grande impacto
no cenário cultural brasileiro há décadas”, afirma o pesquisador, justificando
a escolha das publicações. “Além disso, tem a facilidade metodológica: a Veja e a Folha disponibilizam os arquivos
digitalizados de suas edições antigas em seus sites.”
No total, foram avaliados 863
textos segundo uma série de categorias, entre elas a editoria em que a matéria
fora publicada, fontes citadas, se a depressão é o tema principal da matéria e
qual é o sentido dessa palavra nela – transtorno ou distúrbio, doença ou outra
classificação.
Sentidos para a depressão
Segundo Saint Clair, a palavra ‘depressão’
vem do termo latino depressare, que significa
‘pressão para baixo’. Essa definição pode ter desde o sentido de depressão
física, até de depressão econômica ou de depressão geológica.
No caso da amostra analisada, a palavra
‘depressão’ é usada, entre as décadas de 1970 e 1990, majoritariamente como
referência às mazelas socioeconômicas do país. “Mas mesmo com esse sentido, a
palavra também estava atrelada a uma questão política, não apenas por conta da
ditadura, mas por causa do questionamento que a crise da economia gerava em
relação ao regime”, explica o pesquisador. “Havia, assim, os ‘deprimidos’, como
os políticos exilados, cassados e desempregados, e a ‘depressão’ do Brasil como
um todo, nesse cenário de flagelo sociocultural e político”, completa.
Foi só no começo da década de 1990, como
Saint Clair mostra em sua tese, que o termo passou a adquirir o sentido mais
recorrente na imprensa atual. Na maioria de suas aparições a partir desse
período, depressão designa um transtorno psíquico passível de
instrumentalização por saberes técnicos especializados.
Desde que iniciou a pesquisa, o comunicólogo
dispõe de uma ferramenta on-line que o alerta para a menção da palavra
‘depressão’ em sites de jornais, revistas e em blogues.
Isto vem lhe permitindo computar a ocorrência diária do termo e observar os
usos e sentidos da palavra nesses meios.
Mesmo o
sentido médico da palavra tem
sido extrapolado na sociedade brasileira,
que a
evoca para falar das diferentes
formas de experiência do sofrimento
O pesquisador destaca que mesmo o sentido
médico e científico da palavra, predominante na mídia hoje, tem sido
extrapolado na sociedade brasileira, que a evoca cada vez mais para falar das
diferentes formas de experiência do sofrimento. “A utilização banalizada da
palavra ‘depressão’ como transtorno mental parece-nos um relevante sintoma da
incapacidade de uma cultura de simbolizar afetos tristes em geral sem apelar
para uma concepção estritamente técnica e pragmática das manifestações de
tristeza humana”, ressalta.
Atualmente Saint Clair dá continuidade à
pesquisa em seu pós-doutorado na UFRJ, no qual ele trata não apenas da
depressão, mas também de outros distúrbios psiquiátricos. “Agora eu passo a
acompanhar como vem se dando a produção de sentido na mídia acerca de diversos
outros transtornos psíquicos”, completa.
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