A palavra depressão é usada com grande
liberdade. Basta um pequeno problema, uma desfeita, um desencontro emocional,
um prejuízo financeiro, para nos declararmos deprimidos. Embora seja empregada
como sinônimo de tristeza, tem pouco a ver com esse sentimento.
Depressão é uma doença grave. Se não
for tratada adequadamente, interfere no dia a dia das pessoas e compromete a
qualidade de vida. Nos adultos, é mais fácil de ser diagnosticada. Eles se
queixam e, mesmo que não o façam, suas atitudes revelam que não se sentem bem e
a família percebe que algo de errado está acontecendo. Com as crianças, é
diferente. Elas aceitam a depressão como fato natural, próprio de seu jeito de
ser. Embora estejam sofrendo, não sabem que aqueles sintomas são resultado de
uma doença e que podem ser aliviados. Calam-se, retraem-se e os pais, de modo
geral, custam a dar conta de que o filho precisa de ajuda.
SINAIS DA DEPRESSÃO INFANTIL
Drauzio – Quais
são os sinais de depressão que devem ser observados na criança, uma vez que ela
não reconhece que está deprimida?
Sandra Scivoletto – A
criança tem grande dificuldade para expressar que está deprimida. Primeiro,
porque não sabe nomear as próprias emoções. Depende do adulto para dar o
significado daquilo que se chama tristeza, ansiedade, angústia. Por isso, tende
a somatizar o sofrimento e queixa-se de problemas físicos, porque é mais fácil
explicar males concretos, orgânicos, do que um de caráter emocional.
Alguns aspectos do comportamento
infantil podem revelar que a depressão está instalada. Por natureza, a criança
está sempre em atividade, explorando o ambiente, querendo descobrir coisas
novas. Quando se sente insegura, retrai-se e o desejo de exploração do ambiente
desaparece. Por isso, é preciso estar atento quando ela começa a ficar quieta,
parada, com muito medo de separar-se das pessoas que lhe servem de referência,
como o pai, a mãe ou o cuidador. Outro ponto importante a ser observado é a
qualidade de sono que muda muito nos quadros depressivos.
O que se tem percebido nos últimos
anos é que a depressão, na infância, caracteriza-se pela associação de vários
sintomas que vão além da ansiedade de separação manifesta quando a criança
começa a frequentar a escola, por exemplo, e incluem até de medo de comer e a
escolha dos alimentos passa a ser seletiva.
Portanto, a criança pode estar dando
sinais de depressão quando a ansiedade de separação persiste e ela reclama o
tempo todo de dores de cabeça ou de barriga, nunca demonstrando que está bem.
Drauzio – Quais
são as características do sono da criança deprimida?
Sandra Scivolletto – Na
depressão infantil, o sono começa a ser interrompido por pesadelos e o medo de
ficar sozinha faz com que reclame e chore muito na hora de dormir. Não é o
choro de quem quer continuar brincando. É um choro assustado, indicativo do
medo que está sentindo o tempo todo.
Drauzio – Quando
os quadros de depressão passaram a ser reconhecidos na infância?
Sandra Scivoletto – O
reconhecimento da depressão na infância é relativamente recente na psiquiatria,
justamente pela dificuldade que a criança tem de referir-se ao que sente. Por
isso, muitas vezes, era considerada portadora de fobias específicas, tais como
os transtornos comportamentais e a ansiedade de separação. Foi só há mais ou
menos 20 anos, que a doença passou a ser reconhecida em adolescentes, uma vez
sua forma de expressão é diferente da dos adultos.
DIAGNÓSTICO
Drauzio – Como você diferencia a depressão dos distúrbios de hiperatividade e atenção?
Drauzio – Como você diferencia a depressão dos distúrbios de hiperatividade e atenção?
Sandra Scivoletto – Na
criança, é bem fácil diferenciar a hiperatividade da depressão. Criança
hiperativa não para quieta, mexe-se o tempo todo, principalmente os meninos.
Entretanto, existe um subtipo de hiperatividade que se caracteriza pela
desatenção. A criança não é hiperativa fisicamente, mas não consegue focar a
atenção, por isso se retrai e vai abandonando as atividades. Muitos a
consideram desligada, mas ninguém a considera uma criança triste.
Ao contrário, criança deprimida logo
demonstra que não se interessa por nada e não há brincadeira que a faça
sentir-se melhor. Fica parada o tempo todo e quer sempre alguém em que confie
por perto.
Drauzio – Crianças
deprimidas perdem a iniciativa?
Sandra Scivoletto – Perdem a
iniciativa e deixam de aprender. Na escola, apresentam várias dificuldades de
aprendizado e, num primeiro momento, são encaminhadas para a avaliação do
oftalmologista, do otorrino, da fonoaudióloga. Passam também por testes específicos
para o déficit de atenção e hiperatividade. No passado, o diagnóstico de
depressão era feito por exclusão. Hoje se sabe que sintomas como alterações do
apetite e do sono, diminuição da atividade física, medo excessivo, duradouro e
persistente, são próprios da depressão infantil.
FATORES DE RISCO
Drauzio – Existem
fatores desencadeantes que aumentam o risco de quadros depressivos nas
crianças?
Sandra Scivoletto – Existem.
Como nos adultos, luto, perdas, separação dos pais, dificuldade de adaptação a
situações novas, mudança de escola e de domicílio podem gerar estresse, que vai
desgastando a criança e conduzindo a um quadro depressivo. No entanto, na
maioria dos casos, existe um componente hereditário, genético, mais
significativo do que nos adultos, responsável pelo desencadear quadros de
depressão na criança.
Drauzio – Filhos
de pais depressivos ou com parentes próximos com quadros de depressão correm
maior risco de apresentar o problema?
Sandra Scivoletto – Correm,
e a depressão que se inicia na infância, geralmente, é mais grave. Por isso, a
criança deve ser tratada o mais rápido possível.
Drauzio – Qual
é o inconveniente de não diagnosticar a doença e não iniciar o tratamento
precocemente?
Sandra Scivoletto – Primeiro, a dificuldade de aprendizado
é grande. Depois, a criança vai crescer achando que a alegria estampada nas
outras pessoas não foi feita para ela e conforma-se com esse referencial. Mais
tarde, quando adolescente, estará mais propensa ao uso de drogas, porque irá
procurar alguma coisa que alivie esse desconforto permanente. Não é possível
que só os outros consigam ser felizes.
Drauzio – Num
primeiro momento, as drogas fazem isso num piscar de olhos…
Sandra Scivoletto - Juntar o
imediatismo próprio do adolescente com o alívio momentâneo que a droga dá é um
caminho que passa a falsa impressão de que o problema está resolvido. Isso
torna a situação mais difícil ainda. Quando ouve que deve abandonar o uso de
droga, ele argumenta: “Logo agora que estou me sentindo bem e sem a droga passo
mal?”.
Drauzio – Nos
adultos, a estimativa é que para os quadros depressivos sejam mais frequentes
nas mulheres (três mulheres para cada homem). Nas crianças, essa diferença
entre os sexos também existe?
Sandra Scivoletto – Na
infância, a ocorrência de depressão é praticamente igual nos dois sexos. A
diferenciação começa na adolescência, fase em que as meninas são mais
vulneráveis. Sem dúvida, a questão hormonal interfere consideravelmente nesse
processo.
SINAIS NA ADOLESCÊNCIA
Drauzio – Existe
alguma diferença entre o quadro clínico da depressão infantil e da depressão na
adolescência?
Sandra Scivoletto – Existe,
principalmente nos meninos, até por fatores culturais. O menino não internaliza
as emoções como a menina, que se tranca no quarto e chora. Ele se torna
extremamente agressivo, fica na defensiva o tempo todo e sai brigando com o
mundo.
Basta alguém lhe dizer bom-dia, para
achar que o estão acusando de alguma coisa. Rebelde e desafiador, está
permanentemente em confronto. Cria problemas na escola, em casa e entra em
conflito com as figuras hierárquicas. Irrita-se com muita facilidade e essas
reações, às vezes, são confundidas com algum transtorno de comportamento.
Quando se fala aos pais que ele está deprimido, eles reagem: “Como? Se ele tem
uma energia para brigar que não tem fim?”.
Na realidade, o adolescente deprimido
age como se a melhor defesa fosse o ataque e, se conseguimos ultrapassar essa
barreira, ele se mostra muito angustiado e chora.
Drauzio – Pensando
na minha infância, na infância de minhas filhas e das crianças que vi crescer,
acho que toda criança tem fases em que se mostram mais quietas e caladas e, às
vezes, apresentam dificuldade de adaptação na escola. O limite entre o que
acontece com a criança sem maiores problemas e as que têm distúrbios mais
sérios é muito sutil. O que deve ser valorizado nesses casos?
Sandra Scivoletto – Crescer
é doloroso. Só crescemos quando o incômodo é maior do que o medo da mudança.
Aí, tomamos coragem e damos um salto. Isso acontece ao longo da vida e na
infância inteira. A criança tem medo de dormir fora de casa, mas, convidada por
um amigo, pensa – “Se eu não for porque estou com medo, não vou poder brincar
com meu amigo” – e a vontade de estar com ele supera o medo. A criança
deprimida não tem essa vontade e, consequentemente, não encara os desafios.
Retomando as reações da criança normal, diante da dificuldade ela se retrai,
fica mais quieta. É um comportamento de proteção, desejável, que evita
situações de maior risco. Entretanto, a partir do momento em que se sente mais
confiante, encara e vence o obstáculo. Isso é motivo de enorme alegria que a
ajuda a fortalecer a autoestima e a aumentar a autoconfiança.
A criança deprimida não dá esse
salto. Aliás, não tem autoestima, sente-se permanentemente incapaz, não
enfrenta desafios. Como é mais difícil desistir do que tentar, vai sofrendo um
afunilamento das atividades.
A adolescência é uma fase de crises,
mas de crises extremamente breves, fugazes. No mesmo dia, pela manhã, o
adolescente é a pessoa mais infeliz do mundo e, à noite, o mais alegre, porque
conseguiu enfrentar e resolver os problemas que o afligiam. No deprimido, o
processo da crise é longo, permanente.
REAÇÃO DOS PAIS
Drauzio – Respeitadas
as diferenças de cada família, como costuma ser o comportamento dos pais diante
de um filho com depressão?
Sandra Scivoletto – A
primeira reação, principalmente se existem outros filhos, é de alívio. “Que
bom, como ele é quietinho, não dá trabalho nenhum!”, eles dizem, porque durante
o dia não demanda atenção, fica quietinho no seu canto. Todavia, à noite,
quando afloram os medos, ele começa a incomodar, porque não quer ficar sozinho,
nem deixa os pais saírem de perto. Geralmente, essa dificuldade de desligar-se
acaba gerando conflito entre os cônjuges. O pai acha que a mãe está
superprotegendo a criança, que está cada vez mais mimada.
O que acontece com a maioria dos
filhos? Longe dos pais, da mãe principalmente, eles são ótimos, alegres,
comunicativos. Já a criança deprimida fica quietinha num canto, não brinca. Não
é que seja muito agarrada à mãe. Mesmo longe dela, mostra-se retraída, quieta.
Os pais têm enorme resistência em
entender esse comportamento como doença. A primeira leitura é interpretá-lo
como erro de criação e sentem-se culpados. Na grande maioria dos casos, a
criança é encaminhada para psicólogos e só depois de um ou dois anos, quando a
terapia não resolveu, é que procuram outro profissional.
Drauzio – Como
vocês lidam com esses casos?
Sandra Scivoletto - Temos
trabalhado muito no sentido de sair do consultório e do ambiente hospitalar
para atuar nas escolas com os professores. São eles as pessoas mais
capacitadas, não para o diagnóstico, mas para traçarem uma avaliação do
comportamento da criança. Os pais estão emocionalmente envolvidos e fica
difícil para eles assumir essa tarefa.
SUICÍDIO
Drauzio – Muitos
adolescentes se suicidam, às vezes, por motivo aparentemente banal, mas no
fundo, por trás desse gesto, está a depressão. Quadros de depressão não
reconhecida e não tratada podem levar a extremos como esse?
Sandra Scivoletto –
Felizmente, o suicídio infantil é raro, porque a criança tem uma visão
diferente da morte. Não a vê como fim do sofrimento. É como se fosse um sono do
qual acordará depois.
Na infância, o mais comum é surgir um
comportamento que chamamos de parassuicida. Acidentes podem acontecer com todas
as crianças, mas com a criança deprimida são frequentes, porque ela não se
protege, cai da árvore, é atropelada, arrebenta-se andando de bicicleta. Mal se
refez de um, está metida em outro acidente. Parece que nunca aprende a
resguardar-se.
Na adolescência, a intensidade dos
sentimentos e emoções aumenta. Adolescentes são mais imediatistas e querem
resolver rápido a situação que tanto os incomoda. Por isso, num impulso, em
momentos de extrema angústia, cometem suicídio. É muito difícil perceber neles
uma ideação suicida estruturada e planejada ao longo do tempo.
O que se tem notado, nessa faixa de
idade, é a tendência ao envolvimento com gangues. Dão a impressão de que se
sentem atraídos pela ideia de morte e, como não têm coragem para matar-se,
enredam-se em situações em que um tiro disparado por outra pessoa, será a
melhor solução para o problema, já que não têm nada a perder.
TRATAMENTO
Drauzio – No
tratamento das crianças com depressão há sempre necessidade do uso de
medicamentos?
Sandra Scivoletto –
Não. Na infância, conseguimos controlar alguns casos leves e reconhecidos
precocemente com psicoterapia e a orientação dos pais. Entretanto, como a
depressão tem um componente genético muito forte, em certos casos, a
necessidade de medicação torna-se quase compulsória.
Drauzio – Como
nos adultos, a medicação precisa ser usada por bastante tempo?
Sandra Scivoletto –
Não. Felizmente, a criança responde muito mais depressa aos medicamentos do que
o adulto e, quanto menor for o tempo de uso da medicação, melhor. O que se faz,
nesses casos, é indicar um antidepressivo numa dose a mais baixa possível até a
criança começar a apresentar o comportamento esperado para a idade. Isso demora
uns dois meses aproximadamente. Sedimentado esse comportamento, suspende-se o
remédio, mas tanto a introdução, quanto sua retirada, são feitas aos poucos,
lentamente.
Drauzio – Às
vezes, comentários na imprensa leiga sugerem que alguns medicamentos para a
depressão infantil aumentariam a ocorrência de suicídios. Existe alguma relação
cientificamente comprovada nesse sentido?
Sandra Scivoletto – O que
acontece é que adolescentes muito deprimidos pensam em morrer, mas a depressão
é tão intensa que eles não têm o impulso para tentar o suicídio. Quando começam
o tratamento para a depressão, o que primeiro melhora é a iniciativa e não o
humor. Não é que o antidepressivo tenha um efeito colateral que leve ao
suicídio. Não, infelizmente o humor é a última coisa que melhora.
Por isso, insistimos em que ninguém
pode usar antidepressivos sem ser acompanhado de perto por um médico, porque é
preciso reconhecer o momento em que há essa passagem ocorre e redobrar a
atenção.
FONTE: Sandra
Scivoletto é médica psiquiatra, professora da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo, coordenadora do Grupo de Estudos Álcool e Drogas e
responsável pelo Ambulatório de Adolescentes do Hospital das Clínicas da FMUSP
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