Dor ou alegria, sol ou nuvens, para a depressão tanto faz.
Quando ela decide atacar, a única defesa é atacar antes, diz autor de
best-seller
Quando Andrew Solomon escreveu O Demônio do Meio-Dia,
mergulhou fundo nas imagens. Só assim, quem sabe, alguém que nunca viu a cara
da depressão poderia entender essa dor. Uma das imagens era a da trepadeira que
tomou conta de um carvalho centenário. "Só bem de perto se podia ver como
haviam sobrado poucos ramos vivos, e quão poucos e desesperados gravetos
brotavam do carvalho, espetando-se como uma fileira de polegares do tronco
maciço."
O carvalho centenário era o carvalho da sua infância, e a
trepadeira de fato o sugou. A depressão Solomon a viveu na alma, num estágio
severo, depois de a mãe morrer num suicídio assistido, após longo tratamento de
câncer. "No final, eu estava compactado e fetal, esvaziado por essa coisa
que me esmagava sem me abraçar." Esse americano-britânico, a um mês dos 50
anos, tinha 31 na época. Levou mais cinco anos para compor uma anatomia da
doença que em 2001 ganhou o National Book Award e em 2002 foi finalista do
Pulitzer.
Se O Demônio do Meio-Dia, lançado no Brasil pela Objetiva,
emerge aqui nessa semana, é por causa do Dia Internacional de Prevenção ao
Suicídio. Na terça-feira foi lembrada a taxa mundial de suicídio divulgada pela
OMS: entre 10 e 30 por 100 mil habitantes. O Datasus soltou o número de 9.852
brasileiros que se mataram em 2011. Considerando-se a subnotificação, presume
ser maior. No geral, com o que corroboram vários estudos, cerca de 90% dos
suicídios estão associados a estados depressivos.
"Depressão e suicídio são entidades separadas que com
frequência coexistem, influenciando-se mutuamente", afirma Solomon. Por
falta de uma, ele propõe políticas públicas para as duas, com formação de
profissionais de saúde e ferramentas na medida para distúrbios ainda sub ou
sobretratados.
Nesta entrevista, feita a partir de Cleveland, Ohio, o
escritor menciona o novo livro, Longe da Árvore, que será lançado em outubro
pela Companhia das Letras. São mil páginas sobre o universo de famílias cujos
filhos são marcados pela excepcionalidade. Seu foco na nossa conversa, porém, é
o tratamento daquilo com que Solomon precisa conviver eternamente, à espreita
de que a trepadeira queira subir novamente pelos seus pés: "Toda manhã e
toda noite, olho para as pílulas na minha mão: branca, rosa, vermelha,
turquesa. Às vezes parecem uma escrita, hieróglifos dizendo que o futuro pode
ser muito bom, e que devo a mim viver para vê-lo".
O senhor costuma dizer que a depressão ceifa mais anos do
que a guerra, o câncer e a aids juntos. Em suas palavras, ela pode ser "a
maior assassina da Terra". Como explicar a escala do problema?
A variação do estado de ânimo é uma vantagem da evolução da
espécie. Sem a capacidade de ser triste, por exemplo, não teríamos o amor como
o conhecemos, já que ele contém necessariamente a sensação da perda antecipada,
que aumenta nosso apego à pessoa. A depressão é uma disfunção desse espectro.
No entanto, como é contígua à tristeza e à ansiedade, é difícil regulá-la.
Ainda assim, provavelmente temos mais casos de depressão nestes tempos modernos
do que tivemos ao longo da história. São tempos eletrônicos, superconectados e
superpovoados, que nos impõem tensões não vividas no passado. Com novos
discernimentos, diagnosticamos a doença com mais frequência. E porque temos um
tratamento mais eficaz, há um incentivo para que as pessoas se identifiquem com
essa condição. Contudo, apesar dessas ferramentas clínicas (drogas, psicanálise,
terapia cognitivo-comportamental, terapia eletroconvulsiva, etc), a maioria das
pessoas com depressão não recebe tratamento, o que é um desastre para a saúde
pública.
Por que não recebem tratamento?
A depressão é, em geral, resultado de uma vulnerabilidade
genética desencadeada por circunstâncias externas. Podemos supor que a
vulnerabilidade atinja todas as classes sociais - e, em seguida, perceber que a
experiência dos pobres é mais estressante e, portanto, deve levar a uma maior
taxa de depressão. A questão é que pessoas com uma vida confortável que se
sentem arrasadas o tempo todo tendem a perceber a estranheza desse sentimento e
procuram tratamento. Já os pobres acham que o que sentem é compatível com suas
vidas, e não lhes ocorre que estejam deprimidos. Muitas vezes, nem estão
deprimidos por causa de problemas externos, mas a depressão os desvitaliza de
tal forma que os impede de melhorar de vida.
Não externar fragilidades também pode dificultar o
diagnóstico? Vivemos em uma sociedade que não suporta lamúrias?
Não acho que o lamento tenha alguma vez sido popular. Como
um amigo meu disse certa vez, "autopiedade não dá bilheteria". Mas
acho que devemos fazer uma distinção entre choramingar num encontro social e
identificar a depressão num quadro clínico. Depressão é uma experiência de dor
intensa, por vezes tão intensa que a única opção parece ser o suicídio. Buscar
tratamento para essa dor é a coisa sensata a fazer. Manter-se em silêncio não
traz benefício a ninguém.
A vida virtual e a fragilidade nas relações sociais e
familiares podem aumentar o sentimento de vazio existencial?
Sem dúvida. Seres humanos precisam interagir com outros
seres humanos; quando interagem principalmente com uma tela de computador ou
com um aparelho de televisão, tornam-se alienados e descontentes. A depressão é
uma doença da solidão, e aqueles com relações familiares frágeis partem de um
lugar ainda mais solitário. Muitas vezes, as pessoas que estão deprimidas acham
a interação humana estressante, e se isolam. É importante lembrar que exigir
reação de uma pessoa muito deprimida pode exacerbar a doença. Mas fazê-la
perceber quão realmente é amada é essencial na sua recuperação.
Há muito charlatanismo nos tratamentos?
Há um charlatanismo sem fim. Mas, às vezes, o charlatanismo
funciona. Se você tem câncer no cérebro e alguém disser que ficará melhor se
plantar bananeira por 20 minutos toda manhã, você continuará com o câncer no
cérebro e provavelmente morrerá com ele. Mas se você tem depressão, alguém
disser o mesmo e você se sentir melhor com essa prática, então de fato está
melhor naquele momento: afinal, a depressão é uma doença do sentir. Fazendo
essa ressalva, acho perigoso perseguir tratamentos alternativos e adiar os
comprovados, porque, quanto mais tempo procrastinar o tratamento da depressão,
pior ela vai ficar. E tudo que se quer é dar a volta por cima quanto antes. Há
pessoas que tomam medicamentos de que não precisam, e há pessoas que não
recebem a medicação necessária. Estou mais preocupado com os da segunda
categoria, mas ambos são problemas.
O gatilho para a depressão é necessariamente negativo?
O gatilho é geralmente uma forma de estresse, e eventos
positivos podem ser tão estressantes quanto os negativos. Uma interrupção de
estabilidade, uma ruptura do status quo, tudo isso pode levar à depressão.
Algumas pessoas ficam deprimidas quando mudam de emprego, mesmo que quisessem
fazê-lo. O mesmo acontece quando algumas se casam ou têm filhos.
Como lidar com a possibilidade de um novo colapso?
A depressão é uma doença cíclica, e a maioria das pessoas
que teve um episódio terá outro. A primeira coisa é saber disso e estar
preparado. A segunda é certificar-se de que você tem um bom tratamento. Eu, por
exemplo, tomarei medicação e farei terapia o resto da vida. Mas, além disso,
conheço os sinais de alerta e tento ser sensível a eles. Quando começo a me
sentir mal, volto a ser rigoroso com meus horários de sono, com os exercícios,
com tensões desnecessárias. É importante planejar essas estratégias enquanto
você está se sentindo bem, caso a depressão volte a bater à porta. Às vezes,
com terapia e medicação, é possível evitar uma recaída, mas muitas vezes não é.
Quase sempre é possível, no entanto, que as recaídas sejam menos frequentes e profundas.
A depressão varia de cultura para cultura?
Na essência, é a mesma. Eu me propus a quebrar a ideia de
depressão como uma doença da modernidade ocidental e de classe média,
demonstrando que existe ao longo do tempo (Hipócrates fez uma das melhores
descrições do distúrbio); que existe em todas as culturas (fui olhar a
depressão entre os inuits da Groenlândia, entre os sobreviventes do Khmer
Vermelho no Camboja e examinar rituais tribais para tratar a doença na África
Ocidental); e em todas as classes. A ansiedade aguda pode ter um foco
diferente, por exemplo. Mas sua característica fundamental é surpreendentemente
consistente.
No ano 2000, 815 mil pessoas tiraram a própria vida. No
Brasil, tivemos um aumento de 30% na mortalidade por suicídio entre os mais
jovens, homens especialmente, nas últimas duas décadas. Mas pouco se trata do
tema. O tabu em torno do suicídio pode comprometer o diagnóstico da depressão,
considerada uma de suas principais causas?
É verdade: quase todo suicídio é resultado da depressão.
Algumas pessoas cometem suicídios racionais porque têm, por exemplo, uma doença
terminal avançada e não querem morrer sentindo uma dor insuportável. Mas, em
geral, o suicídio é o ponto final de uma depressão não tratada. A natureza
epidêmica do suicídio é resultado da nossa falta de cuidado com a saúde mental,
a visão corrente de que as doenças mentais não são doenças reais. Elas são
doenças reais, e elas matam pessoas. Prevenção é um imperativo urgente para os
governos e agências de serviços sociais. As pessoas podem ser resgatadas da
beira do precipício.
A depressão cresce entre as crianças?
Sim, em parte pelas razões pelas quais está aumentando em
toda a sociedade, mas também porque as crianças estão sob mais pressão, são
mais superestimuladas, mais levadas a se movimentar de um lugar para o outro e
de escola para escola. Isso acontece porque os pais estão ambos trabalhando
fora, e as crianças têm ficado com uma variedade de cuidadores que as amam
menos que os pais. Isso acontece por causa do colapso da família.
No seu último livro, Longe da Árvore, o senhor conta
histórias de pais que não apenas aprendem a lidar com seus filhos deficientes
como acham um significado profundo em fazer isso. Por que escolher esse tema?
Eu sou o filho gay de pais heterossexuais, e sempre me
impressionei com quão difícil era para a minha família me entender. Se
compartilhássemos a mesma qualidade definidora de identidade, talvez fosse mais
fácil. Tempos depois, numa missão jornalística, descobri que a maioria das
crianças surdas nasce de pais que ouvem, e que elas se aproximam entre si na
adolescência. Em seguida, um amigo de um amigo teve uma filha anã, e percebi
que a maioria dos anões nasce de pais de estatura padrão. Enfim, constatei um
padrão de pais que têm filhos profundamente diferentes deles, e vi que todas
essas crianças tinham algo em comum, assim como essas famílias tinham
semelhanças entre elas. Quando se conhece a experiência de negociação entre
pais e filhos tão diferentes, de repente se está falando da maioria da
humanidade. Nossas diferenças nos unem. Eu queria escrever um livro não sobre o
sofrimento, mas sobre o amor - sobre quantos tipos de amor podem prosperar
mesmo quando as circunstâncias parecem se armar contra eles.
FONTE: Mônica Manir - O Estado de S. Paulo