Lembra-te, antes que cheguem os
maus dias, e se rompa o fio de prata,
e se despedace o COPO de ouro, e
se quebre o cântaro junto à fonte,
e se desfaça a roda junto ao poço…
Eclesiastes 12, 1-8
A
vida está cheia de rituais para exorcizar a Morte. Agora, quando escrevo, dia 3
de janeiro de 1991, acabamos de passar por dois deles. É claro que não lhes
damos este nome, pois o seu sucesso depende de que o Nome Terrível não seja
ouvido. Para isto se faz uma barulheira enorme de sinos, fogos de artifício,
danças, risos, muita comida, e alegria engarrafada… E tudo isso só para que a
voz Dela não seja ouvida… Natal não é isto? Não existe uma tristeza solta no
ar? O esforço desesperado de repetir um passado, fazer com que ele aconteça de
novo? Encontrei, certa vez, numa loja nos Estados Unidos, um pacotinho de ervas
e temperos num saquinho de plástico com o nome: “perfumes de Natal”. Tem de ser
aqueles cheiros antigos, de infância. As músicas novas não servem, é preciso
que as mesmas dos outros tempos sejam cantadas de novo. E que haja o mesmo
rebuliço, os mesmos bolos, as mesmas frutas. Prepara-se a repetição do passado,
para se ter a ilusão de que o tempo não passou. Melhor o incômodo da correria e
da ressaca do que a dor de ouvir o que Ela está silenciosamente dizendo: “É,
mas o tempo passou. Não pode ser recuperado. Você está passando…” Pensar dói
muito. O Natal dói muito... E saímos da depressão da perda por meio de um outro
ritual. Tolice imaginar que o tempo passou. Que nada. É um novo tempo que vem.
Há muito tempo à espera. “Feliz Ano Novo!” E, no entanto, é tudo mentira.
Certo
está o poeta:
Mas
o que eu não fui, o que eu não fiz o que nem sequer sonhei; o que só agora vejo
que deveria ter feito, o que só agora claramente vejo que deveria ter sido isto
é que é morto para além de todos os Deuses…
Pode
ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei.
Mas
poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses,
sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-os
no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos… (Álvaro
de Campos, Poesias, “Na noite terrível…”)
Não, não, a Morte não é algo que nos espera no fim. É companheira
silenciosa que fala com voz branda, sem querer nos aterrorizar, dizendo sempre
a verdade e nos convidando à sabedoria de viver.
O
que ela diz? Coisas assim:
“Bonito
o crepúsculo, não? Veja as cores, como são lindas e efêmeras… Não se repetirão
jamais. E não há formas de segura-las. Inútil tirar uma foto. A foto será
sempre a memória de algo que deixou de ser… E esta tristeza que a beleza dá?
Talvez porque você seja como o crepúsculo…. É preciso viver o instante. Não é
possível colocar a vida numa caderneta de poupança…”
“Você
sabe que horas são? Está ficando frio… E as cores do outono? Parece que o
inverno está chegando…”
“O
que é que você está esperando? Como se a vida ainda não tivesse começado… Como
se você estivesse à espera de algum evento que vai marcar o início real da sua
vida: formar, casar, criar os filhos, separar da mulher ou do marido, descobrir
o verdadeiro amor, ficar rico, aposentar… Como se os seus instantes presentes
fossem provisórios, preparatórios. Mas eles são a única coisa que existe…”
“E
esta música que você está dançando? É de sua autoria? Ou é um Outro que toca, e
você dança? Quem é este Outro? Lembre-se do que disse o poeta ‘Sou o intervalo entre o meu desejo e aquilo que os desejos
dos outros fizeram de mim’. Mas, se você é isto, o intervalo, você já morreu…
Acorde! Ressuscite!”
A
branda fala da morte não nos aterroriza por nos falar da Morte. Ela nos
aterroriza por nos falar da Vida. Na verdade, a Morte nunca fala sobre si
mesma. Ela sempre nos fala sobre aquilo que estamos fazendo com a própria Vida,
as perdas, os sonhos que não sonhamos, os riscos que não tomamos (por medo), os
suicídios lentos que perpetramos.
“Lembra-te,
antes que se rompa o fio de prata e se despedace o corpo de outro”, e que seja
tarde demais.
Uma
das canções mais belas do Chico eu nunca ouvi tocada no rádio. Tenho
perguntado, e pouca gente conhece. Desconfio. É porque ela é a mansa sabedoria
da Morte, que ninguém quer ouvir. Diz assim: “O velho
sem conselhos, de joelhos, de partida, carrega com certeza todo o peso de sua
vida. Então eu lhe pergunto sobre o amor… A vida inteira, diz que se guardou do
carnaval, da brincadeira que ele não brincou… E agora, velho, o que é que eu
digo ao povo? O que é que tem de novo pra deixar? Nada. Só a caminhada, longa,
pra nenhum lugar… O velho, de partida, deixa a vida sem saudades, sem dívida,
sem saldo, sem rival ou amizade. Então eu lhe pergunto pelo amor… Ele me diz
que sempre se escondeu não se comprometeu, nem nunca se entregou… E agora,
velho, que é que eu digo ao povo? O que é que tem de novo pra deixar? Nada. Eu
vejo a triste estrada aonde um dia eu vou parar. O velho vai-se agora, vai-se
embora sem bagagem. Não sabe pra que veio, foi passeio, foi PASSAGEM. Então eu
lhe pergunto pelo amor… Ele me é franco. Mostra um verso manco dum caderno em
branco que já se fechou. E agora, velho, o que é que eu digo ao povo? O que é
que tem de novo pra deixar? Não. Foi tudo escrito em vão… E eu lhe peço perdão
mas não vou lastimar”… Parece até que o Chico e o Jorge Luis Borges
entraram de acordo, pois este escreveu coisa muito parecida: “Instantes: Se eu puder viver novamente a minha vida, na
próxima trataria de cometer mais erros. Não tentaria ser perfeito. Relaxaria
mais. Seria mais tolo ainda do que tenho sido. Na verdade, bem poucas coisas
levaria a sério. Seria até menos higiênico. Correria mais riscos, viajaria
mais, contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria mais
rios. Iria para lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvete e menos sopa. Teria
mais problemas reais e menos problemas imaginários. Eu fui uma desta pessoas
que viveu sensata e produtivamente cada minuto de sua vida. Eu era uma destas
pessoas que nunca ia a parte alguma sem um termômetro, uma bolsa de água
quente, um guarda-chuva e um pára-quedas. Se voltasse a viver, viajaria mais
leve. Se eu pudesse voltar a viver, começaria a andar descalço no começo da
primavera e continuaria assim até o fim do outono. Daria mais voltas na minha
rua, contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças, se tivesse
outra vez uma vida pela frente. Mas, já viram, tenho 85 anos e sei que estou
morrendo…”
É!
Embora a gente não saiba, a Morte fala com a voz do poeta. Porque é nele que as
duas, a Vida e a Morte encontram-se reconciliadas, conversam uma com a outra, e
desta conversa surge a Beleza. Agora, o que a Beleza não suporta é o falatório,
a correria… Ela nos convida a contemplar a nossa própria verdade. E o que ela
nos diz é simplesmente isto: “Veja a vida. Não há tempo
pra perder. É preciso viver agora! Não se pode deixar o amor para depois. CARPE
DIEM!”
Foi
esta a primeira lição do professor de literatura do filme A sociedade dos
poetas mortos. CARPE
DIEM: agarre o dia! E o efeito de tal
revelação poética, nascida da reconciliação da Vida com a Morte, é uma
incontrolável explosão de liberdade. É só isto que nos dá coragem para
arrebentar a mortalha com que os desejos dos outros nos enrolam e mumificam.
Tive
um amigo, Hans Hoekendijk, um holandês que esteve
prisioneiro num campo de concentração alemão. Contou-me de sua
experiência com a morte. A guerra já chegava ao fim, e os prisioneiros
acompanhavam num rádio clandestino o avanço de tropas aliadas e já faziam o
cálculo dos dias que os separavam da liberdade. Até que o comandante da prisão
reuniu a todos no pátio e informou que, antes da libertação, todos seriam
enforcados. “Foi um grito de lamentação e horror… seguido da mais
extraordinária experiência de liberdade que jamais tive em minha vida”, ele
disse. “Se eu morrer dentro de dois dias, então nada
mais importa. Não há sentido em me guardar, não há sentido em ser prudente. Não
preciso pretender ser outra coisa do que sou. Posso viver a minha verdade, pois
nada pode me acontecer. Não preciso de máscaras. Tenho a permissão para a
honestidade total. Posso ir ao guarda nazista, que sempre me aterrorizou, e
dizer a ele tudo o que sinto e penso…
Que é que ele pode me fazer? Posso ir até
aquela mulher que sempre amei, mas de quem nunca me aproximei (afinal, ela
estava com o marido, e naqueles tempos isto era levado em consideração…) e
pedir licença ao marido para confessar os sentimentos… Posso dizer tudo o que
sinto, mas que nunca me atrevi a dizer, por medo”. E me contou dessa
experiência fantástica de liberdade e verdade que se tem quando se está
pendurado sobre o abismo. A Morte tem o poder de colocar todas as coisas em
seus devidos lugares. Longe do seu olhar, somos prisioneiros do olhar dos
outros, e caímos na armadilha de seus desejos. Deixamos de ser o que somos para
sermos o que eles desejam que sejamos. Diante da Morte, tudo se torna
repentinamente puro. Não há lugar pra mentiras. E a gente se defronta então,
com a Verdade, aquilo que realmente importa. Para ter acesso a nossa verdade,
para ouvir de novo a voz do desejo mais profundo, é preciso tornar-se um
discípulo da Morte. Pois ela nos dá lições de vida, se acolhemos como amiga. ”A morte é nossa
eterna companheira” – dizia Don Juan, o bruxo. “Ela se encontra sempre a nossa esquerda, ao alcance do
braço”. Ela nos olha sempre até o dia que nos toca. Como é possível
alguém se sentir importante, sabendo que a Morte o comtempla? O que você deve
fazer ao se sentir impaciente com alguma coisa, é voltar-se para sua esquerda e
pedir que a sua Morte o aconselhe. Estamos cheios de lixo! É a Morte é a única
conselheira que temos. Sempre que você sentir, como
acontece sempre, que tudo está indo de mal a pior, e que você se encontra a
ponto de aniquilado, volte-se para sua Morte e lhe pergunte se isso é verdade.
Sua Morte lhe dirá que você está errado, que nada realmente importa, fora do
seu toque. Ela lhe dirá “ainda não te
toquei”. Alguém tem que mudar e depressa. Alguém tem que aprender
que a Morte é caçadora e que ela se encontra a nossa esquerda. Alguém tem que
pedir o conselho da Morte e abandonar a maldita mesquinharia que pertence aos
homens que vivem as suas vidas como se a Morte nunca fosse bater no seu ombro.
Houve
um tempo em que o nosso poder perante a morte era muito pequeno. E por isso os
homens e mulheres dedicavam-se a ouvir a sua voz e podiam tornar-se sábios na
arte de viver. Hoje, o nosso poder aumentou, a Morte foi definida como inimiga
a ser derrotada, fomos possuídos pela fantasia onipotente de que nos livramos
de seu toque. Com isso, nós nos tornamos surdos às lições que ela pode nos
ensinar. E nos encontramos diante do perigo de que, quanto mais poderosos
formos diante ela (inutilmente, porque só podemos adiar.) mais tolos nos
tornamos na arte de viver. E, quando isso acontece, Morte que podia ser
conselheira sábia, transforma-se em inimiga que nos devora por detrás. Acho que
para recuperarmos um pouco a sabedoria de viver seria preciso que nos
tornássemos discípulos e não inimigos da Morte. Mas para isso seria preciso
abrir espaço em nossas vidas para ouvir a sua voz. Seria preciso que
voltássemos a ouvir os poetas...
Referência
ALVES,
Rubem. A morte como conselheira. In: CASSORLA, Roosevelt M. S.
(Coord). Da morte.
Campinas: Papirus, 1991.
FONTE: Espaço cuidar