Os manicômios não são passado, são
presente. Uma pesquisa realizada no hospital psiquiátrico Pinel, em São Paulo,
mostra que, mesmo depois das novas diretrizes da política de saúde mental no
Brasil, crianças e adolescentes continuaram a ser trancados por longos
períodos, muitas vezes sem diagnóstico que justificasse a internação, a mando
da Justiça. Conheça a história de Raquel: 1807 dias de confinamento. E de José:
1271 dias de segregação. Ambos tiveram sua loucura fabricada na primeira década
deste século
Em uma noite de novembro de 2007, a
psicóloga Flávia Blikstein escutou de uma menina duas perguntas. E descobriu
que não tinha respostas. Flávia trabalhava num Centro de Atenção Psicossocial
(CAPS) infantil, em São Paulo, e encontrava-se na ambulância para levar a
garota para sua primeira internação psiquiátrica. Maria, como aqui será
chamada, tinha 14 anos. Era negra, alta e magra. Falava pouco, frases curtas.
Gostava de brincar de boneca e de desenhar. Às vezes pintava as unhas, arrumava
o cabelo, anunciando a adolescência. Maria se molhava o tempo todo, em pequenos
rituais. Abria a torneira, fazia uma conchinha com as mãos e molhava os pés, as
pernas, os braços. Fazia isso em qualquer lugar, causando vergonha à mãe.
Talvez Maria estivesse esculpindo com a água os limites do próprio corpo.
Quando fez a primeira pergunta à Flávia, ela ainda tinha as pontas dos dedos
úmidas, e o seu olhar também era molhado:
- Por que eu vou ficar aqui?
Flávia descobriu que não tinha
resposta.
Maria fez então a segunda pergunta:
- Quem tá aí? Quem vai dormir no
quarto comigo?
Flávia descobriu que não tinha
resposta também para essa. Não tinha resposta porque, ao contrário do que
costuma acontecer quando crianças e adolescentes nos mostram a face do abismo,
ela tinha escutado as perguntas. Escutado mesmo. A “menina louca” tinha
indagado sobre a estrutura do Estado e da sociedade que a obrigava a dar o
primeiro passo para dentro de uma instituição psiquiátrica. Talvez Maria
intuísse que esse passo poderia ser longo. Talvez Maria adivinhasse que os
dentes do sistema estavam à sua espera, logo ali.
Flávia abraçou Maria. E pediu
desculpas por não saber responder. Maria entrou, carregando olhos molhados e
pontos de interrogação.
A “menina louca” tinha indagado
sobre a estrutura do Estado e da sociedade que a obrigava a dar o primeiro
passo para dentro de uma instituição psiquiátrica
O que Maria perguntou à Flávia,
perguntou a todos nós: por que, no século 21, crianças e adolescentes
brasileiros, a maioria filhos de famílias pobres, continuam a ter suas vidas
mastigadas num hospital psiquiátrico. A “criança louca” fez aos normais a
pergunta mais lúcida: por que a condenavam a uma existência de manicômio. A
habitar um mundo de dor, vagando entre paredes, desvestindo a si mesma para
vestir um uniforme, sem direito ao desejo. Por que lhe negavam a humanidade tão
cedo.
Flávia não pôde esquecer as
perguntas, menos ainda a sua falta de respostas. Dedicou-se a buscá-las.
Encontrou-as no arquivo do Núcleo da Infância e da Adolescência (NIA) do Centro
de Atenção Integrada em Saúde Mental (CAISM) Philippe Pinel. O Pinel é uma das
instituições de referência para internação de crianças e adolescentes com problemas
mentais no estado de São Paulo.
Flávia sabia que aquilo que se costuma chamar
de arquivo morto era bem vivo. Então, botou-o para falar. Fechou-se na pequena
sala bordada de estantes durante todos os sábados de um ano inteiro. Analisou
451 casos, correspondentes a 611 internações ocorridas entre janeiro de 2005 e
dezembro de 2009. Destes, 79% das crianças e adolescentes haviam sido
internados apenas uma vez. Os 21% restantes tiveram de duas a sete
reinternações. Alguns casos, que continuaram a voltar ao Pinel, ela acompanhou
também nos anos de 2010 e 2011. Flávia queria saber qual era o percurso que
levava crianças e adolescentes ao hospital psiquiátrico como primeira
providência – e não como exceção pontual e por tempo determinado.
O arquivo do Pinel ficava logo
abaixo da enfermaria das crianças e adolescentes. Enquanto pesquisava, Flávia
podia ouvir os gritos. Percebeu, porém, que mais do que gritos havia um
silêncio longo. Um silêncio, nas suas palavras, “estranho e profundo, um
silêncio que não imaginamos num lugar cheio de crianças e adolescentes”. Dentro
do arquivo, não. Os prontuários contavam histórias. Ainda que a voz de meninos
e meninas ressoasse mais nas ausências, nas entrelinhas, os prontuários diziam
de infâncias aniquiladas numa vida de manicômio. E mostravam por que caminhos a
fabricação de crianças loucas é uma verdade profunda do Brasil. Flávia chamava
o arquivo de “sala das almas”. E as almas falavam.
Duas crianças, que se transformaram
em adolescentes no hospital psiquiátrico, contaram histórias que poderiam
ilustrar livros escabrosos sobre os manicômios do passado, mas que se passaram
na primeira década desse século. Aqui, elas serão chamadas de José e de Raquel.
José permaneceu confinado por 1271 dias – ou três anos e cinco meses. Raquel,
por 1807 dias. Ficou trancada dos 11 aos 16 anos – e de lá foi transferida para
outra instituição psiquiátrica. José e Raquel estavam segregados no Pinel, a
mando da Justiça, sob reiterados protestos da equipe técnica. Foram depositados
como coisas no Pinel porque ainda é este o destino dado a crianças como eles no
Brasil.
Por
quê?
Flávia sabia que aquilo que se
costuma chamar de arquivo morto era bem vivo. Então, botou-o para falar.
Analisou 451 casos, correspondentes a 611 internações ocorridas entre janeiro
de 2005 e dezembro de 2009
É preciso prestar muita atenção às
respostas que Flávia encontrou. Sua escuta de três mil horas dentro do arquivo
transformou-se numa dissertação de mestrado em psicologia social na Pontifícia
Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Somando-se a trabalhos fundamentais
de outros pesquisadores do tema, tanto em São Paulo como em vários estados do
Brasil, a investigação mostra por que os manicômios persistem apesar das
diretrizes da política de saúde mental e do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA). A Lei nº 10.216, de 2001, orientada pela reforma
psiquiátrica, prioriza o atendimento em rede, em serviços inseridos na
comunidade, perto da família, e determina que a internação só pode ocorrer
depois de esgotados todos os recursos extra-hospitalares. Não é o que acontece
em casos demais.
“Medievais”, “desumanos” e
“criminosos”. Essas são algumas das palavras usadas para definir os hospícios
desde que a luta antimanicomial se intensificou a partir do final dos anos 1970
e conquistou avanços significativos nesse século. A pesquisa mostra, porém, que
mesmo instituições e profissionais que tentam fazer diferente são seguidamente
vencidos pelas engrenagens e pela escassez de serviços públicos de base. Na
prática, ainda hoje, é de manicômio e de vida manicomial que se trata em uma
parte significativa dos casos, uma realidade só possível pelo descaso quase
absoluto da sociedade com o destino dessas crianças, em geral filhas de
famílias pobres. Ao fazer o arquivo morto falar, Flávia constrói respostas que
precisam ser escutadas se quisermos, de fato, estancar o crime de fabricar
crianças loucas – e, muitas vezes, também o de conseguir enlouquecê-las.
Raquel nasceu em 1994. A mãe estava
presa por tráfico de drogas, não porque era chefe de uma organização criminosa,
mas porque vendia uma pequena quantidade para sustentar seu próprio vício. Esse
destino é comum nos presídios do país, é também gerador de órfãos de mães
vivas. Pobre demais para dar conta dela, a avó colocou Raquel num abrigo aos
cinco anos. A menina é de imediato descrita como “agressiva”. E, por esse
motivo, é afastada das outras crianças. Passa a morar com o que se chama de
“mãe social”, isolada numa casa nos fundos do abrigo. A escolha, como mostra
Flávia, evidencia que, desde sempre, a resposta à agressividade de Raquel é a
exclusão. Obviamente, também não deu certo. De abrigo em abrigo, Raquel virou
aquela que “não dava certo” em abrigo nenhum.
Talvez valesse a pena perguntar se a
agressividade, ao se olhar para o contexto e as circunstâncias, não era o
principal traço de sanidade de Raquel. Mas o direito à história é o primeiro a
ser arrancado das “crianças loucas”. Ela já tinha quase tantos rótulos quanto
anos de vida: filha de presidiária, abandonada, agressiva, não dá certo...
Raquel só era vista por estigmas e fragmentos.
Ela queria saber qual era o percurso
que levava crianças e adolescentes ao hospital psiquiátrico como primeira
providência – e não como exceção pontual e por tempo determinado
Negra como Maria, ela foi internada
pela primeira vez em 2005, aos 11 anos. Entrou no sistema por ordem da Justiça.
Antes de seguirmos o seu destino, é crucial entender as duas formas de entrada
nas instituições psiquiátricas, identificadas pela pesquisa. Nelas se encontra
uma das chaves para compreender a fabricação das crianças loucas no Brasil
atual. Assim como os caminhos pelos quais é mantida viva a função histórica dos
manicômios como lugar de segregação daqueles que são decodificados como
perigosos para a ordem social, ainda que sejam apenas pobres e abandonados.
Em pouco mais da metade dos casos –
55% – o pedido de internação psiquiátrica foi feito por familiares e por
diferentes serviços da rede de saúde. Nos outros 45%, crianças e adolescentes
foram internados por ordem judicial. Estes são os dois caminhos de entrada nos
hospitais psiquiátricos. A pesquisa mostrou, porém, algumas diferenças
fundamentais para compreender o problema: no período pesquisado, a Justiça
internou mais cedo, por mais tempo e mais vezes. A maioria dos casos era de
adolescentes, mas as crianças respondiam por 20% das internações por ordem
judicial. Pela via da rede de saúde, menos de 6% eram crianças. Por ordem
judicial, o tempo médio de internação era quase o dobro (55 dias contra 30). A
Justiça também foi responsável por 92% das internações com duração maior do que
150 dias. Entre os 14 casos que sofreram internações de quatro a sete vezes, 12
tinham sido confinados por ordem judicial.
Entre eles, Raquel. Dos 11 aos 16
anos, ela foi internada seis vezes no Pinel. A queixa da primeira vez:
“Paciente institucionalizada há oito meses (nome de outro hospital), com
transtorno de comportamento, heteroagressiva (agressividade dirigida a
terceiros), em tratamento ambulatorial pouco resolutivo”. Depois de seis dias,
o Pinel deu alta e a menina foi encaminhada a um abrigo. Oito dias mais tarde,
ela foi novamente internada por ordem judicial: “Paciente portadora de
transtorno de conduta grave. Uma vez no abrigo, voltou a ficar agressiva.
Crítica seriamente comprometida, ameaçadora”. Outros 19 dias de internação, e o
Pinel pediu à justiça que ela tivesse alta. Passada uma semana, o pedido foi
atendido, e ela voltou ao abrigo. Mais três dias e Raquel de novo foi internada
no Pinel por ordem judicial: “Ao retornar ao abrigo volta a apresentar quadro
importante de liberação de agressividade e falta de controle de impulsos”.
Raquel ficou trancada no Pinel por 1004 dias.
Nessas três primeiras vezes,
tornou-se evidente que a justiça internava e o hospital liberava, porque não
havia razão para manter Raquel confinada. Documentos anexados ao prontuário
mostram que a direção da instituição enviou diversos relatórios à justiça,
tanto informando da alta médica da paciente quanto pedindo encaminhamento a um
abrigo e tratamento ambulatorial. Num dos documentos, a direção afirma: “Nosso
hospital está fazendo o papel de Abrigo para esses adolescentes. Sabedores
dessa ilegalidade pedimos com urgência uma resolução para esse problema”. E, em
outro ofício: “Atualmente a adolescente continua residindo na enfermaria para
tratamento de pacientes agudos, encontra-se longe da escola e com enormes
prejuízos psicológicos e sociais”.
“Medievais”, “desumanos” e
“criminosos”. Essas são algumas das palavras usadas para definir os hospícios
desde que a luta antimanicomial se intensificou a partir do final dos anos 1970
A cada três meses, o Pinel mandou
ofícios à justiça. Só foi atendido depois de quase dois anos e nove meses. Mas
a vida de Raquel fora do hospital durou apenas uma semana. Mais uma vez ela foi
internada na instituição. O motivo: “Evolui com episódios recorrentes de
agressividade, fugas necessitando atendimento em unidades de emergência. Há
dois dias em acompanhamento no CAPS sem aderência ao tratamento”. Depois de
mais 413 dias de internação, Raquel fugiu do hospital. Voltou espontaneamente
dois dias mais tarde. Para onde mais ela iria, já que o longo período de
confinamento esgarçou ainda mais os frágeis vínculos familiares e a impediu de
criar novos?
Raquel permaneceu internada mais 244
dias, antes de ser encaminhada a outro abrigo. Quinze dias fora do hospital, e
a justiça mandou-a de volta: “Jogou fora seus remédios, quebrou o vidro da
brinquedoteca, feriu-se, pegou o telefone para se enforcar e fugiu para uma
cidade vizinha dizendo que ia procurar seus avós”.
Na sexta vez, está registrado no
prontuário: “A paciente verbaliza que a maior dificuldade que enfrentou no
retorno ao abrigo foi uma sensação de inadequação na convivência com
adolescentes sem problemas psiquiátricos; infelizmente, criou-se um vínculo
inadequado iatrogênico (provocado pela própria prática médica) de segurança com
o ambiente de internação, o que se configura como Hospitalismo”.
Em outras palavras. Raquel não sabia
mais viver fora do hospital psiquiátrico, seus vínculos estavam dentro da
instituição. Se tinha a algum afeto, era ali. Era no hospital que ela sabia
como se comportar, identificava uma rotina, fazia amigos entre outras crianças
e adolescentes como ela ou realmente doentes. Considerava profissionais de
saúde como parentes. E, mais tarde se saberia, quebrava coisas e agredia
pessoas quando era mandada para o abrigo porque sabia que assim voltaria àquele
que era o único lugar parecido com um lar que tivera na vida.
No total, Raquel ficou trancada no
Pinel cinco anos. Sublinha-se: sem necessidade. Sua vida cabe em três caixas do
arquivo. Mas esse não foi o fim de sua trajetória manicomial. Em 2010, aos 16
anos, ela foi transferida para outro hospital psiquiátrico
Nessa época, a direção do Pinel
mandou mais um ofício à justiça: “Aproveito a oportunidade para dizer da
indignação dessa equipe técnica que, por diversas vezes, acionou o judiciário
solicitando a desinternação desses adolescentes que, na ocasião, precisavam
apenas de um abrigo para moradia e dar continuidade ao atendimento
ambulatorial, tendo assim seu direito constituído”.
No total, Raquel ficou trancada no
Pinel cinco anos. Sublinha-se: sem necessidade. Sua vida cabe em três caixas do
arquivo. Mas esse não foi o fim de sua trajetória manicomial. Em 2010, aos 16
anos, ela foi transferida para outro hospital psiquiátrico.
O diagnóstico que sustentou a
condenação de Raquel a uma vida manicomial é bastante revelador: “transtorno de
conduta”. Segundo a Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID),
“os transtornos de conduta são caracterizados por padrões persistentes de
conduta dissocial, agressiva ou desafiante. Tal comportamento deve comportar
grandes violações das expectativas sociais próprias à idade da criança; deve
haver mais do que as travessuras infantis ou a rebeldia do adolescente e se
trata de um padrão duradouro de comportamento (seis meses ou mais)”. Essa
“patologia”, assim como outras que compõem a CID, é contestada por parte dos
psiquiatras, psicanalistas e psicólogos, assim como por profissionais de outros
campos do conhecimento. Mas, ainda que se aceite que essa doença de fato
existe, o tratamento recomendado é inserção comunitária – e não asilamento.
Em sua investigação, Flávia mostrou
que o diagnóstico de “transtorno de conduta” tem sido usado de modo
generalizado – e quase displicente – para justificar internações em hospitais
psiquiátricos. Tanto na internação pela via da rede de saúde como na internação
por ordem judicial, o principal diagnóstico é esquizofrenia. Mas o “transtorno
de conduta” tem aumentado. Numa comparação com uma pesquisa anterior, na qual
Julia Hatakeyama Joia analisou os prontuários do Pinel entre fevereiro de 2001
e agosto de 2005, Flávia constatou que os chamados “transtornos do
comportamento e transtornos emocionais” – dos quais “transtornos de conduta”
correspondem a 75% dos casos – cresceram como motivo de confinamento. Em 2002,
eram causa de 5,26% das internações. Passaram para 7,14% em 2005. E alcançaram
15,2% das ocorrências em 2009. “Em muitos casos, é diagnosticado em crianças
com episódios de descontrole e agressividade, sem que exista uma análise sobre
sua história e contexto de vida”, afirma a psicóloga. Outro dado comparativo de
extrema relevância é que, entre 2001 e 2004, a proporção de internações no
Pinel por ordem judicial era de 23% do total. De 2005 a 2009 saltou para 45%.
Em sua investigação, Flávia mostrou
que o diagnóstico de “transtorno de conduta” tem sido usado de modo
generalizado – e quase displicente – para justificar internações em hospitais
psiquiátricos
O “transtorno de conduta” é bem mais
recorrente na internação por ordem judicial do que na internação pela via da
rede de saúde. É o diagnóstico de um quarto das internações com duração maior
do que 150 dias e por mais de um terço dos casos de crianças e adolescentes
internados de quatro a sete vezes. É o rótulo de Raquel – e também o de José.
Meninos representam quase 80% das crianças e adolescentes internados, um dado
cujas razões precisam ainda ser melhor compreendidas.
José tinha 10 anos quando deu o
primeiro passo para dentro do Pinel, por ordem judicial. Tinha passado, segundo
o relatório da instituição, por “maus tratos, negligências e privação afetiva”.
Apresentou “comportamentos desafiadores e transgressores, o que resultou em
rejeição e abandono familiar, principalmente de sua mãe”. A mãe decidiu
entregá-lo para o pai, na Bahia. No dia da viagem, José recusou-se a ir. Ele
não queria se separar da mãe. Para não ser obrigado a viajar, por duas vezes
tentou se jogar diante dos carros, na rua. A “crise de agitação” levou à sua
primeira internação. A duração: 623 dias.
Quando teve alta, José foi
encaminhado a um abrigo. Permaneceu apenas três dias antes de ser internado
novamente. Dessa vez, ficou trancado por 255 dias. José fugiu. Para onde? Para
a casa de mãe. Mais uma internação, por “agitação psicomotora com intensa
heteroagressividade, baixa tolerância à frustração, sem crítica, e risco de
vida”. Dessa vez, ficou 84 dias na instituição antes de fugir novamente. Para
onde? Para a casa da mãe. Na quarta e última internação, ele permaneceu 309
dias no Pinel. Foi então encaminhado para um abrigo. De onde fugiu. Para a
Bahia, em busca de um lugar e de um afeto.
No total, José ficou 1271 dias
trancado no Pinel: três anos e cinco meses. Sobre José e Raquel, a equipe
técnica do hospital enviou um ofício à Justiça, em 2008: “(...) Estão em alta
médica, mas permanecem nesta enfermaria psiquiátrica para tratamento de
pacientes com transtornos mentais agudos, privadas de ter uma vida digna, por
não terem retaguarda familiar e não existirem vagas em abrigos”. Sobre esse
destino, Flávia afirma: “As internações são motivadas por uma combinação
complexa, que resulta numa situação de vulnerabilidade. A resposta da
internação psiquiátrica, além de redutora de complexidade, é ela mesma
produtora de maior sofrimento. A internação por ordem judicial revela uma
concepção sobre a infância e a adolescência pautadas no medo e no perigo.
Propõe uma resposta única a todas as situações, sem considerar diferenças,
singularidades e contextos. Reduz crianças e adolescentes ao status de paciente
psiquiátrico perigoso, produzindo sua cronificação”. É assim que se fabricam
crianças loucas.
Vale a pergunta: fugir pode ter sido
um ato de sanidade de José, na tentativa de não ser enlouquecido? De algum
modo, apesar de tudo e de todos, ele parece acreditar que existe um lugar para
ele, um lugar com afeto. José, Raquel e Maria nos mostram que não há desamparo
maior do que o de uma criança num manicômio. Ninguém está mais sozinho nesse
mundo do que José, Raquel e Maria. Expostos a uma sociedade que, além de não
protegê-los, os enlouquece. Eles fogem, como José, eles quebram tudo, como
Raquel, eles fazem perguntas, como Maria. Mas estão sozinhos. E cada um de seus
atos de resistência é mais um carimbo de sua suposta loucura num arquivo morto.
O desafio exposto pela pesquisa é
também o de completar a reforma psiquiátrica no Brasil. Crianças e
adolescentes, segundo a legislação, devem ser tratados dentro da comunidade,
junto à família, sem afastamento da escola
Ao analisar os prontuários, Flávia
conseguiu identificar claramente as diferenças entre a internação via rede de
saúde e a internação por ordem judicial. Essas são conclusões cruciais do
trabalho, porque apontam o que funciona e o que não funciona, apontam saídas.
Na rede de saúde, a maior parte dos encaminhamentos é feita pela emergência de
hospitais, o que não é o melhor percurso. Apenas 8% são enviados para
internação por Unidades Básicas de Saúde ou por CAPS (Centro de Atenção
Psicossocial) infantil, que deveriam ser a porta de entrada para crianças e
adolescentes com sintomas de doenças mentais. Esses dados demostram a falta
desses serviços, causando desamparo na população que necessita de assistência
pelo SUS. Em vez de começarem o tratamento pela rede básica, inserida na
comunidade, o iniciam pelo fim e por aquilo que é uma exceção necessária num
mínimo de casos: a internação. A hipótese de Flávia é de que, se houvesse mais
serviços comunitários de saúde mental, como está previsto na legislação, é
provável que a necessidade de internação fosse bem menor. Em vez do hospital
psiquiátrico, uma rede articulada, com investimento maior em equipes de saúde
mental, na capacitação e implantação do Programa de Saúde da Família e de
centros de atenção psicossocial. “A patologização das crianças em situação de
vulnerabilidade social evidencia a precariedade da rede de atenção e cuidado, e
também a insuficiente articulação entre as políticas públicas nos campos da
educação, saúde, habitação e lazer”, afirma.
A diferença é clara na análise dos
dados. Nos casos encaminhados pelos Centros de Atenção Psicossocial, a média de
dias de internação é mais baixa do que pelos outros caminhos. Quando crianças e
adolescentes são cuidados pelos CAPS depois da alta, apenas 3% são
reinternados. “Isso mostra que os serviços comunitários funcionam, mas são em
número insuficiente”, afirma Flávia. “Nos pacientes encaminhados pela rede de
saúde, o hospital funciona como enfermaria de crise. A maioria é de
adolescentes de 15 a 17 anos, em seu primeiro surto psicótico, que são cuidados
e liberados. Já na internação por via judicial, o hospital funciona como
instituição de asilamento.”
O desafio exposto pela pesquisa é
também o de completar a reforma psiquiátrica no Brasil. Crianças e
adolescentes, segundo a legislação, devem ser tratados dentro da comunidade,
junto à família, sem afastamento da escola. A doença, se de fato existe, deve
ser compreendida como uma das várias características – e não como a verdade
única sobre aquela criança e adolescente. Mesmo a internação, se for
necessária, deve ser entendida como uma parte da história – e não como a
história inteira. A internação é um momento, não um destino.
Flávia permanecia das 10h até as 21h
de cada sábado na sala das almas do Pinel. Numa noite, estava tão mergulhada
nos prontuários que se esqueceu da hora e se atrasou para sair. O guarda do
portão recusou-se a deixá-la ir. Eram as regras. Ele não estava ali para pensar
sobre elas, mas para cumpri-las. E Flávia soube o que era estar entre muros – e
não ser escutada. Depois de um tempo que pareceu largo demais, Flávia conseguiu
provar que era uma psicóloga, fazendo um trabalho de pós-graduação para a PUC.
Acredita que o fato de ser branca, loira e de olhos azuis possa ter ajudado na
sua “soltura”. Mas, ao abrir o portão, o segurança alertou: “Na próxima vez,
fica”. Por um momento, trêmula, Flávia teve uma tênue aproximação do que
sentiram Raquel, José e Maria, apenas três entre as centenas de “crianças
loucas” fabricadas nesse século.
Ao final de sua estadia no arquivo
morto que ela descobriu ser vivo, Flávia finalmente tinha as respostas para
Maria.
1) Por que eu vou ficar aqui?
- Porque as instituições que compõem
a rede de atendimento à criança e ao adolescente trabalham de forma
desintegrada e não conseguem atender às suas necessidades.
2) Quem tá aí? Quem vai dormir no
quarto comigo?
- As crianças e os adolescentes que
tiveram seus destinos produzidos ativamente pela desresponsabilização e pelo
abandono.
Maria perguntou. Flávia escutou.
Escutou de fato não quando a ouviu, mas quando fez o movimento de buscar as
respostas. Elas estão aí, mas só provocarão mudança se o Estado, os governos e
a sociedade as escutarem. Se nós as escutarmos. É, afinal, de escuta que se
trata.
Flávia desconhece o paradeiro de
José. Raquel foi libertada ao completar 18 anos. Mas o que há para Raquel
depois do que fizemos com ela? É possível, é moral, é decente dizer à Raquel:
vá estudar, vá trabalhar, vá construir uma vida? “É uma marca tão profunda que
pessoas como Raquel, mesmo saindo da instituição, continuam
institucionalizadas”, diz Flávia. “A institucionalização parece uma grande
máquina que suga a potência humana, criando seres humanos sem desejo. A
institucionalização é a patologia mais grave da saúde mental.”
Aos 19 anos, Raquel hoje perambula
pelas ruas e albergues de São Paulo, ao redor das instituições. Às vezes
declara-se “louca” e é internada por curtos períodos. Raquel sempre pergunta
pelo seu melhor amigo:
- Onde está José?
FONTE: BRASIL / EL PAÍS / Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista.