sábado, 19 de julho de 2014

A MORTE COMO CONSELHEIRA: Rubem Alves














Lembra-te, antes que cheguem os 
maus dias, e se rompa o fio de prata, 
e se despedace o COPO de ouro, e 
se quebre o cântaro junto à fonte, 
e se desfaça a roda junto ao poço…
Eclesiastes 12, 1-8

A vida está cheia de rituais para exorcizar a Morte. Agora, quando escrevo, dia 3 de janeiro de 1991, acabamos de passar por dois deles. É claro que não lhes damos este nome, pois o seu sucesso depende de que o Nome Terrível não seja ouvido. Para isto se faz uma barulheira enorme de sinos, fogos de artifício, danças, risos, muita comida, e alegria engarrafada… E tudo isso só para que a voz Dela não seja ouvida… Natal não é isto? Não existe uma tristeza solta no ar? O esforço desesperado de repetir um passado, fazer com que ele aconteça de novo? Encontrei, certa vez, numa loja nos Estados Unidos, um pacotinho de ervas e temperos num saquinho de plástico com o nome: “perfumes de Natal”. Tem de ser aqueles cheiros antigos, de infância. As músicas novas não servem, é preciso que as mesmas dos outros tempos sejam cantadas de novo. E que haja o mesmo rebuliço, os mesmos bolos, as mesmas frutas. Prepara-se a repetição do passado, para se ter a ilusão de que o tempo não passou. Melhor o incômodo da correria e da ressaca do que a dor de ouvir o que Ela está silenciosamente dizendo: “É, mas o tempo passou. Não pode ser recuperado. Você está passando…” Pensar dói muito. O Natal dói muito... E saímos da depressão da perda por meio de um outro ritual. Tolice imaginar que o tempo passou. Que nada. É um novo tempo que vem. Há muito tempo à espera. “Feliz Ano Novo!” E, no entanto, é tudo mentira.

Certo está o poeta:

Mas o que eu não fui, o que eu não fiz o que nem sequer sonhei; o que só agora vejo que deveria ter feito, o que só agora claramente vejo que deveria ter sido isto é que é morto para além de todos os Deuses…

Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei.

Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?

Esses, sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.

Enterro-os no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos… (Álvaro de Campos, Poesias, “Na noite terrível…”)

Não, não, a Morte não é algo que nos espera no fim. É companheira silenciosa que fala com voz branda, sem querer nos aterrorizar, dizendo sempre a verdade e nos convidando à sabedoria de viver.

O que ela diz? Coisas assim:

“Bonito o crepúsculo, não? Veja as cores, como são lindas e efêmeras… Não se repetirão jamais. E não há formas de segura-las. Inútil tirar uma foto. A foto será sempre a memória de algo que deixou de ser… E esta tristeza que a beleza dá? Talvez porque você seja como o crepúsculo…. É preciso viver o instante. Não é possível colocar a vida numa caderneta de poupança…”

“Você sabe que horas são? Está ficando frio… E as cores do outono? Parece que o inverno está chegando…”

“O que é que você está esperando? Como se a vida ainda não tivesse começado… Como se você estivesse à espera de algum evento que vai marcar o início real da sua vida: formar, casar, criar os filhos, separar da mulher ou do marido, descobrir o verdadeiro amor, ficar rico, aposentar… Como se os seus instantes presentes fossem provisórios, preparatórios. Mas eles são a única coisa que existe…”

“E esta música que você está dançando? É de sua autoria? Ou é um Outro que toca, e você dança? Quem é este Outro? Lembre-se do que disse o poeta ‘Sou o intervalo entre o meu desejo e aquilo que os desejos dos outros fizeram de mim’. Mas, se você é isto, o intervalo, você já morreu… Acorde! Ressuscite!”

A branda fala da morte não nos aterroriza por nos falar da Morte. Ela nos aterroriza por nos falar da Vida. Na verdade, a Morte nunca fala sobre si mesma. Ela sempre nos fala sobre aquilo que estamos fazendo com a própria Vida, as perdas, os sonhos que não sonhamos, os riscos que não tomamos (por medo), os suicídios lentos que perpetramos.

“Lembra-te, antes que se rompa o fio de prata e se despedace o corpo de outro”, e que seja tarde demais.

Uma das canções mais belas do Chico eu nunca ouvi tocada no rádio. Tenho perguntado, e pouca gente conhece. Desconfio. É porque ela é a mansa sabedoria da Morte, que ninguém quer ouvir. Diz assim: “O velho sem conselhos, de joelhos, de partida, carrega com certeza todo o peso de sua vida. Então eu lhe pergunto sobre o amor… A vida inteira, diz que se guardou do carnaval, da brincadeira que ele não brincou… E agora, velho, o que é que eu digo ao povo? O que é que tem de novo pra deixar? Nada. Só a caminhada, longa, pra nenhum lugar… O velho, de partida, deixa a vida sem saudades, sem dívida, sem saldo, sem rival ou amizade. Então eu lhe pergunto pelo amor… Ele me diz que sempre se escondeu não se comprometeu, nem nunca se entregou… E agora, velho, que é que eu digo ao povo? O que é que tem de novo pra deixar? Nada. Eu vejo a triste estrada aonde um dia eu vou parar. O velho vai-se agora, vai-se embora sem bagagem. Não sabe pra que veio, foi passeio, foi PASSAGEM. Então eu lhe pergunto pelo amor… Ele me é franco. Mostra um verso manco dum caderno em branco que já se fechou. E agora, velho, o que é que eu digo ao povo? O que é que tem de novo pra deixar? Não. Foi tudo escrito em vão… E eu lhe peço perdão mas não vou lastimar”… Parece até que o Chico e o Jorge Luis Borges entraram de acordo, pois este escreveu coisa muito parecida: “Instantes: Se eu puder viver novamente a minha vida, na próxima trataria de cometer mais erros. Não tentaria ser perfeito. Relaxaria mais. Seria mais tolo ainda do que tenho sido. Na verdade, bem poucas coisas levaria a sério. Seria até menos higiênico. Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria mais rios. Iria para lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvete e menos sopa. Teria mais problemas reais e menos problemas imaginários. Eu fui uma desta pessoas que viveu sensata e produtivamente cada minuto de sua vida. Eu era uma destas pessoas que nunca ia a parte alguma sem um termômetro, uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um pára-quedas. Se voltasse a viver, viajaria mais leve. Se eu pudesse voltar a viver, começaria a andar descalço no começo da primavera e continuaria assim até o fim do outono. Daria mais voltas na minha rua, contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças, se tivesse outra vez uma vida pela frente. Mas, já viram, tenho 85 anos e sei que estou morrendo…”

É! Embora a gente não saiba, a Morte fala com a voz do poeta. Porque é nele que as duas, a Vida e a Morte encontram-se reconciliadas, conversam uma com a outra, e desta conversa surge a Beleza. Agora, o que a Beleza não suporta é o falatório, a correria… Ela nos convida a contemplar a nossa própria verdade. E o que ela nos diz é simplesmente isto: “Veja a vida. Não há tempo pra perder. É preciso viver agora! Não se pode deixar o amor para depois. CARPE DIEM!”

Foi esta a primeira lição do professor de literatura do filme A sociedade dos poetas mortos. CARPE DIEM: agarre o dia! E o efeito de tal revelação poética, nascida da reconciliação da Vida com a Morte, é uma incontrolável explosão de liberdade. É só isto que nos dá coragem para arrebentar a mortalha com que os desejos dos outros nos enrolam e mumificam.

Tive um amigo, Hans Hoekendijk, um holandês que esteve prisioneiro num campo de concentração alemão. Contou-me de sua experiência com a morte. A guerra já chegava ao fim, e os prisioneiros acompanhavam num rádio clandestino o avanço de tropas aliadas e já faziam o cálculo dos dias que os separavam da liberdade. Até que o comandante da prisão reuniu a todos no pátio e informou que, antes da libertação, todos seriam enforcados. “Foi um grito de lamentação e horror… seguido da mais extraordinária experiência de liberdade que jamais tive em minha vida”, ele disse. “Se eu morrer dentro de dois dias, então nada mais importa. Não há sentido em me guardar, não há sentido em ser prudente. Não preciso pretender ser outra coisa do que sou. Posso viver a minha verdade, pois nada pode me acontecer. Não preciso de máscaras. Tenho a permissão para a honestidade total. Posso ir ao guarda nazista, que sempre me aterrorizou, e dizer a ele tudo o que sinto e penso…

Que é que ele pode me fazer? Posso ir até aquela mulher que sempre amei, mas de quem nunca me aproximei (afinal, ela estava com o marido, e naqueles tempos isto era levado em consideração…) e pedir licença ao marido para confessar os sentimentos… Posso dizer tudo o que sinto, mas que nunca me atrevi a dizer, por medo”. E me contou dessa experiência fantástica de liberdade e verdade que se tem quando se está pendurado sobre o abismo. A Morte tem o poder de colocar todas as coisas em seus devidos lugares. Longe do seu olhar, somos prisioneiros do olhar dos outros, e caímos na armadilha de seus desejos. Deixamos de ser o que somos para sermos o que eles desejam que sejamos. Diante da Morte, tudo se torna repentinamente puro. Não há lugar pra mentiras. E a gente se defronta então, com a Verdade, aquilo que realmente importa. Para ter acesso a nossa verdade, para ouvir de novo a voz do desejo mais profundo, é preciso tornar-se um discípulo da Morte. Pois ela nos dá lições de vida, se acolhemos como amiga. ”A morte é nossa eterna companheira” – dizia Don Juan, o bruxo. “Ela se encontra sempre a nossa esquerda, ao alcance do braço”. Ela nos olha sempre até o dia que nos toca. Como é possível alguém se sentir importante, sabendo que a Morte o comtempla? O que você deve fazer ao se sentir impaciente com alguma coisa, é voltar-se para sua esquerda e pedir que a sua Morte o aconselhe. Estamos cheios de lixo! É a Morte é a única conselheira que temos. Sempre que você sentir, como acontece sempre, que tudo está indo de mal a pior, e que você se encontra a ponto de aniquilado, volte-se para sua Morte e lhe pergunte se isso é verdade. Sua Morte lhe dirá que você está errado, que nada realmente importa, fora do seu toque. Ela lhe dirá “ainda não te toquei”. Alguém tem que mudar e depressa. Alguém tem que aprender que a Morte é caçadora e que ela se encontra a nossa esquerda. Alguém tem que pedir o conselho da Morte e abandonar a maldita mesquinharia que pertence aos homens que vivem as suas vidas como se a Morte nunca fosse bater no seu ombro.

Houve um tempo em que o nosso poder perante a morte era muito pequeno. E por isso os homens e mulheres dedicavam-se a ouvir a sua voz e podiam tornar-se sábios na arte de viver. Hoje, o nosso poder aumentou, a Morte foi definida como inimiga a ser derrotada, fomos possuídos pela fantasia onipotente de que nos livramos de seu toque. Com isso, nós nos tornamos surdos às lições que ela pode nos ensinar. E nos encontramos diante do perigo de que, quanto mais poderosos formos diante ela (inutilmente, porque só podemos adiar.) mais tolos nos tornamos na arte de viver. E, quando isso acontece, Morte que podia ser conselheira sábia, transforma-se em inimiga que nos devora por detrás. Acho que para recuperarmos um pouco a sabedoria de viver seria preciso que nos tornássemos discípulos e não inimigos da Morte. Mas para isso seria preciso abrir espaço em nossas vidas para ouvir a sua voz. Seria preciso que voltássemos a ouvir os poetas...

Referência
ALVES, Rubem. A morte como conselheira. In: CASSORLA, Roosevelt M. S. (Coord). Da morte. Campinas: Papirus, 1991.

FONTE: Espaço cuidar